sexta-feira, 5 de setembro de 2014

QUANDO DESCOBRI-ME TRAIDOR

Olhei de um lado, do outro, de costas e de frente, procurando meu melhor ângulo. Não consegui decidir... Inconformado, virei-me do avesso... E descobri-me em ignorância: estou em tudo! Sou todos esses lados e também seus reversos, e posso olhar de cada um desses ângulos sem, no entanto, me perder.
Dei emancipação às minhas partes e as lancei, cada uma em uma direção diferente, em busca dos encantos das pessoas e da vida, da música e da arte que se escondem nas rotinas aparentemente mais patéticas, e me enviavam todos os encantos por um fio afetivo invisível mais eficaz que as mais eficazes fibras óticas, nutrindo a minha matriz de melodia e encantamento.
Daqui, do lugar rotineiro onde me escondo, quase um Clark kent atrás de grandes óculos e uma pasta de professor, dei por exercitar-me amante, e que exercício profundo de descentralização. Num quase abrir mão da imortalidade pela substanciação concreta do amor, enquanto todas as minhas partes iam pelo mundo em busca do encantamento, aqui, de aparência rotineira e medíocre, decidi por agregar à minha vontade, outra; aos meus sonhos, outros; à minha ideia de realização, outra... E de quanto aprendizado isso me foi!!! Antes, apenas sabendo-me amante, agora sendo amante.
E como é maravilhosa a alma amante!!! Ela sacode-nos em nossas raízes e balança nossos ramos mais extensos como que para testar nosso eixo e nossa segurança; confunde a nossa com outra segurança; faz mesmo acreditar que nosso coração bate em outro corpo poético; faz coisas imensas parecerem pequenas e, também seu inverso, coisas pequenas parecerem grandes; garante aos nossos limites uma elasticidade tão grande que nos constrangemos em nossa própria compreensão de nós mesmos...
Se me gostava amador, muito mais agora me gosto amante...
Meio patético, eu sei. Mas até esse ser patético me agrada... rsrsrsrsrsrs... Inclusive quando confunde alguns tolos que me acreditam apenas sabedor do uso do coração como único músculo que pulsa; ignorantes eu sua parca visão, e também não teriam como saber, sei fazer bom uso de outros músculos que pulsam, mas, estão certos, prefiro fazer-lhes uso em conjunto: um pulso estimulando outro, e outros em cadeia pelo corpo e pela alma até um êxtase real que dura horas, dias, semanas, anacrônico a qualquer simples ato que o tenha dado origem.
Escutei, de várias bocas, em várias perspectivas, que todo amor tem suas traições e, embora monogâmico de carteirinha, me descobri traidor. Deixei crescer em meu peito uma paixão antiga, e passei a dedicar meus pensamentos, minha saudade, a ela, de forma a, ao menos nesse instante, não poder estar em qualquer relação sem sentir-me infeliz e traidor.
Para não ser incoerente com tudo o que apregoei, desatei todos os laços, despi-me dos sonhos, peguei de volta o meu coração poético implantando meio que a força em peito outro, e saí, limpo, leve, alegre como a muito não me sentia, em busca da minha antiga paixão. Chorei porque, tendo-a mandado longe e em tantos caminhos, não sabia nem por onde começar a procurá-la. Apenas sentei e chorei a dor da minha saudade... Não imaginava que a verdade dessa saudade pudesse ir tão longe e percorrer os milhares de quilômetros de linhas invisíveis que nos uniam e, uma a uma, todas as partes que deixei livres, foram voltando, e por excelência, para cada uma fiz festa, porque não conseguia deixar de fazê-la tamanho o encantamento que me causavam a cada chegada, pela beleza amadurecida adquirida nesse tempo de emancipação.


E fomos chegando e compondo... compondo e chegando... reabilitando o que se partiu e partiu, sem nunca deixar de ser um, todo. Fomos compondo e chegando, pondo a mesa para um café demorado de fim de tarde. Fomos chegando e compondo a melodia dos que se reencontram...
E os dias, as bobagenzinhas próprias de corações pueril-senis, ganharam nova cor e novo encantamento, agora contempladas por uma multiplicidade de sentidos (sensações e olhares) que, mesmo que tivesse infinitas vidas, abriria mão de todas elas, para levar a cabo, em excelência, apenas uma, essa, vivendo todas no encantamento e na exuberância quase imperceptível de uma só.


Nenhum comentário: